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Um brasileiro

em Madri

 

Madri é uma cidade “maravilhosa”. O jornalista Guilherme Kolling morou na capital da Espanha durante nove meses, de abril a dezembro de 2012, e diz que esse foi um tempo feliz, de intenso aprendizado em muitas direções. Por isso, é possível imaginar que as lembranças intangíveis pesavam mais na bagagem com que passou pela alfândega do que todo o mais que trazia na mala quando voltou ao Brasil. Hoje ele está de volta também ao Jornal do Comércio, onde trabalha como secretário de Redação.

 

Mas não é o trabalho de Guilherme Kolling no JC o foco desta entrevista. Realizada no salão nobre da Associação Riograndense de Imprensa (ARI), perto do meio dia, era para ser uma conversa rápida e descontraída. Descontraída foi. Rápida? Não mesmo. Por uma razão que qualquer um pode entender: a Espanha foi uma experiência muito interessante na vida desse jornalista porto-alegrense de 34 anos idade, tanto no aspecto pessoal quanto no profissional. Aliás, os dois se entrelaçaram desde o início, porque, então editor de Política no JC, ele pediu demissão para acompanhar sua mulher, Naira Hofmeister, que foi a Madri como bolsista.

 

A duração da bolsa e o seu conteúdo estavam definidos. Para Naira. Não para Guilherme, que não se permitiu perda de tempo e correu atrás do que está no seu universo de interesses. Voltou à sala de aula. Em consequência disso, os seis meses iniciais tiveram um acréscimo de mais três e só não houve mais um prolongamento porque a resposta ao pedido de prorrogação do visto demorou demais. Culpa da “burocracia morosa”, que o jornalista vê como possivelmente “proposital” em um país onde o estrangeiro é visto como concorrente em um mercado de trabalho escasso na oferta de empregos. Ainda assim o saldo dos nove meses foi muito bom, porque “fiz três cursos na Universidade Complutense de Madri. Um em cada estação”.

 

Guilherme Kolling explica melhor: “Na primavera, logo que cheguei, fiz um curso de Letras (aperfeiçoamento na língua espanhola), com seis cadeiras voltadas ao aprendizado do idioma espanhol - gramática, léxico, interpretação de texto, conversação, composição/redação; no verão, foi Jornalismo de Dados, disciplina que estimula a prática de reportagens investigativas com o cruzamento e a interpretação de informações disponíveis publicamente; no outono, fui aluno de um curso de Cultura, com cadeiras de Arte, Literatura e História da Espanha”.

 

Nada foi elemento absolutamente estranho na vida dele. Ou novo. Na verdade, algumas informações foram complementares. É que, além da formação em Jornalismo pela Pucrs, Guilherme também fez o curso de Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e acabou encontrando explicação para dúvidas que ainda tinha na gramática do português, mas como aluno das aulas de espanhol. Aliás, língua igualmente derivada do Latim.

 

Afora isso, as aulas foram oportunidades para ouvir a opinião de professores sobre o que observava nas ruas de Madri, onde via os manifestantes do movimento Indignados carregando a bandeira republicana. Os problemas da Espanha mergulhada no pessimismo gerado pela crise econômica - apenas no final de outubro o país conseguiu comemorar um crescimento de 1%, depois de nove trimestres sem nada - seriam resolvidos se a monarquia fosse abolida? Não, segundo um dos professores, para quem “a República significa guerra e a monarquia une o povo”, apesar de a família real protagonizar escândalos que acabaram nas páginas dos jornais.

 

Entre eles, a caçada de elefantes do rei Juan Carlos na África e o desvio de dinheiro atribuído ao genro dele.

Portanto, apesar da vontade dos Indignados, o trono se mantém.

 

O salto alto, também. Apesar da crise – do índice de desemprego geral, que é de 26%, a metade atinge os jovens -, os espanhóis continuam se equilibrando em cima dele, ainda encarando os países latino-americanos com olhar de colonizador. Guilherme Kolling lembra que foi nesse tom a fala do ministro das Relações Exteriores, José Manuel García-Margallo, quando, no dia 16 de abril de 2012, o governo de Cristina Kirchner contrapôs os interesses da Argentina aos da Espanha: ela decidiu nacionalizar parte da petroleira YPF, filial do grupo espanhol Repsol, acusando a empresa de não cumprir os compromissos de investimentos no país.

 

E o Brasil? O tratamento é outro, pelo menos na esfera oficial. Guilherme testemunhou uma demonstração disso quando cobriu para Carta Maior a visita de Dilma Rousseff à Espanha e ela foi recebida como “líder de uma das potências das Américas” (Barack Obama é o outro). O rei se esforçou na recepção. Deslocou-se do palácio onde vive e foi até o centro de Madri para dar as boas-vindas à presidente brasileira no Palácio Real, naquele dia fechado aos turistas. E Juan Carlos, que durante um encontro de líderes se irritara com o então dirigente da Venezuela, Hugo Chávez, disparando um “por que não te calas?” para consumo público, fez parte do seu discurso em português.

 

Efeitos da crise econômica

E o cotidiano? Quero saber se, além do salto, os espanhóis também mantêm o hábito da sesta. A resposta é “sim”. Em Madri, com exceção dos restaurantes, o comércio fecha as portas na hora do almoço. Mas atenção: o meio do dia deles não é o nosso meio do dia. Lá, a manhã vai até 14h. É quando os espanhóis param para almoçar e, claro, sestear. Guilherme gostou disso e afirma que manteria esse horário, acrescentando que a Espanha é muito solar, a noite é longa e alegre e o metrô circula até a uma e meia da madrugada, sem grandes riscos para quem viaja nele nesse horário.

 

Lamentavelmente, a crise econômica está causando o surgimento do morador de rua, mas ainda não produziu aumento nos índices da violência. “Na área histórica, onde há intenso movimento de turistas, sempre há um pedinte”, conta Guilherme, mas também na frente dos supermercados ele viu mãos estendidas para receber esmola. “Soy 100% español y estoy desempleado”, dizia uma placa. Não longe dela, uma jovem abordava pessoas explicando que “recibo o paro (seguro-desemprego), pero no tengo dinero; me ayuda”. E de onde vem essa ajuda? Principalmente através de instituições como a Igreja Católica.

 

O salário mínimo do trabalhador espanhol é 752,85 euros, um pouco mais que a metade do mínimo pago na França. E, embora o custo de vida seja inferior ao de Porto Alegre – o transporte público, por exemplo, é muito mais barato - o clima é de pessimismo generalizado. Nele se cultiva um ressentimento que atribui o papel de vilã a chanceler da Alemanha, Angela Merkel. Espanhóis de todos os níveis a condenam como líder da política de austeridade imposta aos países mais atingidos pelas dificuldades da zona do euro, fazendo coro aos portugueses e gregos. Deploram a “união monetária” e a “falta de união bancária e fiscal”. Para atenuar os efeitos da crise, que encareceu os imóveis de forma absurda, as famílias alugam quartos para uma pessoa e até grupos. E dizem: “es lo que hay”.

 

Diante dessa situação Guilherme não leva na ponta da faca a rejeição ao estrangeiro, mesmo quando, como foi seu caso, ele nada ganha de graça: paga aluguel e paga seu curso. Na opinião dele, esse comportamento é “natural” em quem teme pela própria sobrevivência, havendo casos em que pessoas fraudam o próprio currículo – diminuindo sua capacidade e conhecimentos - para conseguir um emprego.

 

E o jornalismo? Também está no meio da borrasca. O cenário é este: o jornalista formado ganha um tempo como becário, palavra que, traduzida literalmente, significa bolsista, mas é usada também para estagiário. “Depois de formados, esses profissionais seguem um tempo com contrato temporário, recebendo menos que os colegas - mas acima do que ganhavam antes como estagiários”.

 

Guilherme conta que o jornal El País, o mais importante da Espanha, resistiu ao arrocho até onde foi possível, mas acabou não vendo outra saída afora dispensar funcionários. Demitiu mais de 100. Em solidariedade e também para evitar novas tesouradas, colunistas fizeram “greve de assinaturas”. A situação é lamentável também porque atinge um jornal que, na contramão da pressão exercida pela velocidade da internet, continua apostando no aprofundamento das matérias e evita reduzir os conteúdos a um ou dois parágrafos.

 

Guilherme observa outra característica do El País: o olhar muito atento ao mundo. Comparando, afirma que na edição diária do jornal a quantidade de notícias internacionais é maior que a soma de todos os jornais brasileiros.

 

Então, até que ponto os textos longos e o espaço concedido ao que acontece além da Espanha refletem o leitor? Talvez o El País, dando atenção a esse consumidor, tenha encontrado a receita para sobreviver à voracidade da internet.

 

Enquanto pensa sobre isso, por que não vai ao bar mais próximo de Madri para tomar uma cerveja? Vá, mas não chegue ao balcão dizendo “yo quiero dos cañas, por favor”. Não encha a paciência do camarero (garçom). Os espanhóis são muito objetivos. Vá direto ao assunto: “Dos cañas”! Ou, no máximo, “Señor, dos cañas, por favor”. .

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