top of page

O Face

 

JAIME CIMENTI

JORNALISTA

 

 

O Facebook é um guri metido pra mais de metro, está fazendo dez anos, tomou conta. Sou um dos 1,61 bilhão de internautas que fazem parte de uma rede social. Estou no Face, que tem 1.19 bilhões de usuários, e em outras. Pretendia manter intactos os últimos redutos de minha escassa privacidade e pensava em não entrar nas redes, mas acabei entrando.

 

Caiu na rede, é peixe. A privacidade acabou mesmo, para todo mundo, praticamente, qual o problema? Recebo centenas, milhares de emails e mensagens todo dia. Pena que não tenha dinheiro para comprar aquela ilha na Polinésia Francesa, onde deve ter wifi, e o apartamento de cinqüenta milhões de dólares na frente do Central Park,em Nova York, onde tem tudo.

 

 

Serviços, mercadorias, relacionamentos e tudo mais estão bem oferecidos na web, onde a gente às vezes está só no meio de milhões.Domingo passado eu estava no nosso tropical Litoral Norte, me sentindo o último sapo debaixo de vários dilúvios, pensando em cortar os pulsos com uma bolacha Maria e aí fui salvo pelo glorioso Face, o caminho, a verdade e a luz. Coloquei uma foto nova no meu perfil, onde estou cantando no Meme, no Clube da MPB. Pronto, dezenas de amigos, pena que não eram centenas ou milhares, curtiram e comentaram a foto e me cobraram apresentações. Fui salvo da bolacha Maria e de assistir o Faustão.

 

Agora vou ter de assumir de vez o lado cantor. Obrigado, Face.Nas redes a

gente se informa, retoma contato com velhos amigos e parentes, se integra, divulga tudo e viaja virtualmente pelo planeta.Mas tem os problemas, sempre tem: ficar viciado, navegando às quatro da madruga em vez de dormir, ficar se exibindo demais (ainda existe isso, hoje?), abrir mão de toda privacidade, encarar os perfis falsos e a superexposição de si e dos outros e ficar mais na rede do que convivendo e conversando com as pessoas. Pois é, mas não entrar nas redes é como não ir na pracinha ou nos shoppings. Não entrar nas redes é mais do que a solidão, a coisa mais última das pessoas, como disse a Clarice Lispector.

 

 

Desejo que eu e vocês todos usemos as redes de modo educado, delicado, prazeroso, inteligente, bem-humorado e da forma mais livre possível. As redes não se responsabilizam pelas formas e pelos  conteúdos. Como dizia o Tom Jobim , tem as “delicatessen” e as “groceries”. Pense um pouco antes de ficar digitando em clima maníaco. Talvez você não precise contar como foi a primeira vez da tua vovó e a responder a tudo rápido demais. Melhor pegar e ser pegado de leve. 

 

Tempo e circunstância

 

 

MARIA WAGNER

JORNALISTA

O ex-chanceler da Alemanha Helmut Schmidt voltou a Moscou. Diz ele que em turnê de despedida. Mas o homem é duro na queda. Quase centenário, faz pouco dos malefícios atribuídos ao cigarro e fuma como um condenado, acendendo o próximo no que sobrou do que está pitando. Contam que Ludwig Van Beethoven pediu “mais luz” quando se despedia do mundo. Helmut Schmidt deixa imaginar que pedirá “mais um cigarro”.

 

Em Moscou, ele teve uma longa conversa com Vladimir Putin, por quem foi recebido no Kremlin. Entre uma baforada e outra, o assunto entre os dois era a política mundial. Havia um belo arranjo de flores sobre a mesa. Se o aroma delas impregnava a sala? Não sei. A notícia publicada no jornal Die Zeit não entra neste pormenor.  Então o que me chegou é que, apesar da beleza delas, a situação ficou um pouco desconfortável para o anfitrião, que se viu obrigado a defender os colegas europeus diante das críticas de Schmidt aos líderes da União Europeia. Entre uma pausa e outra – às vezes desconcertante, como se vê em programas da Deutsche Welle -, Schmidt costuma dizer o que pensa. Do jeito que é. Certeiro no alvo.  

 

“O Parlamento Europeu e a Comissão Europeia não trabalham muito bem”, disse o ex-chanceler a Putin. Depois, acrescentou que “os governos nacionais também deixam a desejar”. Aos 94 anos de idade, Helmut Schmidt acredita na existência de uma “crise das instituições” e que depois da Segunda Guerra Mundial ninguém se igualou em influência ao britânico Winston Churchill e ao francês Charles de Gaulle na política europeia. “A qualidade dos estados europeus e dos chefes de governo só foi minguando”, lamentou o representante do SPD.

 

E Putin? Aos 61 anos de idade, nada lhe restou afora sair em defesa de seus colegas. "A situação da economia mundial está difícil”, argumentou, porque grandes reivindicações e necessidades sociais dificultaram a solução da crise. E, provavelmente aproveitando o tempo dedicado por Schmidt a mais uma baforada, dessas que deixam o interlocutor mergulhado em uma nuvem de fumaça, o presidente russo fez um agrado ao visitante. Louvou-o como “patriarca, não somente dos países europeus, mas também da política mundial". E ainda lhe sobrou ânimo para agradecer ao ex-chanceler por “sua forte contribuição ao desenvolvimento das relações amigáveis entre russos e alemães”, depois do estrago feito pelo nazismo, que abriu as portas para a ocupação de um pedaço da Alemanha pela União Soviética.

 

O ex-chanceler não diz o que pensa pela metade. Talvez a idade em que está lhe facilite isso, mas é verdade que ganhou respeito também com seu trabalho político. Em 2008 pude vê-lo e ouvi-lo no Teatro de Leipzig, onde ele participava da entrega de um prêmio. Anthony Hopkins também estava lá, como especialmente convidado.  Bem naquele momento, verão na Europa, o lixo tomava conta de Nápoles, cidade italiana, por causa de uma confusão armada pela Máfia. Helmut Schmidt usou aquele imbróglio todo para chamar a atenção sobre um fato geográfico que, segundo ele, aumenta a responsabilidade dos alemães na Europa: “A Alemanha é o país com o maior número de vizinhos no continente e isso nos pede que sejamos organizados e limpos na casa, no corpo e na mente. Não temos o direito de poluir o ambiente e o ar, seja com ideias ou com o lixo de qualquer tipo; se o fizermos estaremos afetando a qualidade de vida dos que nos cercam”.  

 

Tenho verdadeira admiração por Helmut Schmidt. Mas seu discurso nem sempre harmoniza com o que faz. Quando, por exemplo, transforma as pessoas que o cercam em fumantes passivos. Nesses momentos ele fica tal e qual os políticos que a gente conhece em terras brasileiras, aqueles que amanhã, se estiverem no poder, cometerão os mesmíssimos erros que hoje condenam naqueles que estão no comando.  É tudo uma questão de circunstâncias. E de tempos. Helmut Schmidt teria dito a Kruschew o que disse a Putin? Kruschew teria sido tão tolerante quanto Putin? É a política...  

Imprensa e leitores

 

MARIA WAGNER

JORNALISTA

 

Faz algumas semanas, o jornal Die Zeit publicou entrevista com Glenn Greenwald, o jornalista que virou alto-falante de Edward Snowden, agora exilado na Rússia, revelando a espionagem eletrônica levada a cabo, mundo afora, pelo governo Barack Obama através da NSA (agência de segurança). Uma das perguntas – na verdade uma observação - do jornal alemão foi esta: “Nós, jornalistas, aprendemos a manter distância; aprendemos que não podemos nos envolver com pessoas e fatos”.

 

A resposta de Greenwald foi que “isso não é possível”, porque não há distância entre os seres humanos. “Todos os jornalistas são ativistas”, disse. Não poderia ser diferente, porque “representam todos os interesses, expectativas e julgamentos”. Para Greenwald, “a pergunta decisiva não é se um jornalista representa ou não uma opinião, mas se ele partilha essa opinião de forma sincera com seus leitores ou se a esconde. Decisivo é se os fatos que os jornalistas informam a seus leitores realmente aconteceram", salientou.

 

A reportagem agradou aos leitores do jornal. E eles se manifestaram. “Vielen Dank für die Wahrheit, Mr. Greenwald!” (Muito obrigado pela verdade, senhor Greenwald), disse um deles, que acrescentou seus “respeitos, Zeit, por ela também ser impressa!”. Uma clara demonstração de qual é a sua opinião sobre o que encontra nos jornais. Em outras palavras: via de regra ele não acredita no que lê.

 

Para outro leitor, jornalistas como Greenwald prestam um grande serviço à democracia e à liberdade de imprensa, mas “lamentavelmente, são qualificados como inimigos e traidores por políticos dos Estados Unidos”. O mesmo leitor fez uma sugestão ao Die Zeit: que publique também uma entrevista com Jeremy Scahill que, em abril de 2013, lançou o livro “Dirty Wars: The World Is a Battlefield”, (Guerras sujas – o mundo é um campo de batalhas, em tradução literal). Seguindo o rastro do Comando de Operações Especiais Conjuntas (JSOC) em países como Afeganistão, Iêmen e Somália, o repórter investigativo descobriu que o combate ao terror aumentou no governo Obama e que sua lista de alvos inclui cidadãos americanos. “A conversa com ele seria boa”.

 

Um terceiro leitor acredita que o naufrágio da mídia imprensa pode ser a grande chance para o surgimento de uma comunicação realmente livre, bastando para isso uma plataforma independente, na qual jornalistas como Greenwald publicariam seus trabalhos,sem interferências políticas e/ou econômicas. Os assinantes pagariam diretamente a esses jornalistas e não mais à empresa. Poderia dar certo. Poderia?

 

O fato é que a internet surgiu prometendo libertação e democratização. A expectativa era a de que, possibilitando uma comunicação mais aberta e livre, esse meio uniria a humanidade na defesa contra o poder que a maltrata; sem serem controlados, os cidadãos trocariam ideias para derrubar as fronteiras que impedem sua liberdade. “Isso não passou de ilusão”, diz Greenwald, “porque a vigilância do Estado assumiu o poder na rede e quer transformar esse meio de liberdade em meio de vigilância e controle; estamos numa encruzilhada”.

 

Como fugir dessa encruzilhada? Eis a questão. Enquanto a fuga não for possível, fica valendo o que John Swinton (1829-1901) afirmou num encontro de jornalistas, em Nova Iorque, sobre a “Imprensa Livre e Independente”? E o que ele disse é, certamente, um balde de água fria, muito apropriada para congelar os sonhos dos alunos dos cursos de Jornalismo. Swinton, chefe do corpo editorial do New York Times na década de 1860, declarou:“

 

Não há hoje, na América, nada que se possa apontar como uma imprensa independente. Vocês sabem disso e eu sei. Entre vocês não há quem se atreva, honestamente, a colocar sua opinião nos textos que escreve. E se fizesse isso saberia antecipadamente que ela nunca seria impressa. Sou pago semanalmente para manter o meu testemunho sincero fora das páginas do jornal para o qual trabalho. Outros de vocês recebem pagamento semelhante por tarefas semelhantes. Cada um de vocês que fosse tão bobo para dar sua verdadeira opinião no que escreve estaria na rua horas depois e teria que procurar um novo trabalho. Se eu me permitisse publicar a minha verdadeira opinião em alguma edição do meu jornal, não se passariam 24 horas até perder o cargo e me vir obrigado a sair em busca de outro. O nosso negócio, como jornalistas, é destruir a verdade, mentir desavergonhadamente, falsificar, lutar pelos interesses dos poderosos e vender nosso povo e sua gente pelo pão de cada dia. Vocês sabem, eu sei; de onde vêm, então, os discursos triunfais sobre a imprensa independente? Nós somos a mão de obra e os vassalos de gente rica que está atrás da cortina, fora de cena. Somos marionetes; eles puxam a corda e nós dançamos. Nossos talentos, nossas habilidades e nossas vidas são propriedades desses outros. Somos intelectuais prostituídos”. O que mudou desde então?

 

Pagando o preço

 

 

MARIA WAGNER

JORNALISTA


E lá estava eu, depois de uma noite desassossegada. Meu pedido de socorro urgente não tinha sido atendido na madrugada. Fui simplesmente deixada na mão pela empresa que há vários anos cobra regiamente, todos os meses, o valor pelos atendimentos que eu, por desventura, necessitar de seus médicos.


E lá estava. Pensando sobre a vida e sobre a tragicomédia dos acordos que a gente faz ao longo dela. Como esse convênio de saúde. E continuei lá, pensando na inutilidade desses contratos que assinamos, mas que nada garantem. Afinal, a dor havia doído. Muito. Mas não havia me matado, porque aquela não tinha sido a minha hora de acenar um Ciao sem volta.


E lá estava eu agora, na tarde de domingo, no estande da Alemanha na Feira do Livro. Virando as páginas do livro Neue Leben, de Ingo Schulze, mas com os olhos ainda mergulhados no que havia acontecido na madrugada. Então ouvi “você está com dor; se quiser posso tirá-la com uma massagem”. Era a voz de um homem.

 

Certo. Na Feira do Livro e em torno dela muita coisa acontece. De rotineiro, como o lixo que os passantes largam sobre o calçadão; de estranho, como o pastor que prega aos berros; e de inusitado, como a faceirice do senhorzinho que se deixa contagiar pelo som de uma gaita gaudéria. Seu nome? “Bandeira”. Pela cabeça dele nem de longe passa a ideia de parecer estranho ou cômico. Ele vive. 
Agora, no estande da Alemanha, fechei o livro de Schulze e girei nos calcanhares. Não para dançar, claro; para dar uma olhada no dono da voz.

 

Não me pareceu ameaçador, mas... “não, muito obrigada”. Ele insistiu. “Você está sentindo dor na cervical e na lombar”. Estava. Sim, estava. Então resolvi conversar com Guilherme Voigt, acupunturista.

 

Ouvi dele alguns conselhos. Um deles: nunca caminhar com os pés metidos em sapatilhas. Ora, mas nas vitrines, elas parecem tão confortáveis! Mentirosas. São traiçoeiras, porque desequilibram a postura do esqueleto e não protegem a sola do pé, que espelha todos os órgãos do corpo. Orientação aceita, no dia seguinte voltei à Feira num salto largo de três centímetros.  

 

No final do dia, nenhuma dor lombar; nenhum problema na cervical. Mas um tornozelo inchado que levei sorrindo à cerimônia de entrega do Prêmio Cultura Econômica do Jornal do Comércio, no Santander Cultural.

 

Culpa do quê? É aquela velha história. Tão velha quanto a Bíblia – essa literatura ditada pelo machismo – que predestina a mulher à dor. Quer prazer? Então paga o preço, mesmo que troque o salto. Paguei. Avançando feliz entre os livros na Praça da Alfândega dei um passo em falso e torci o pé. Maldito paralelepípedo! 

 

Rua da Praia afora

MARIA WAGNER

Jornalista
 
Tão além dos limites quanto a gordura que ameaçava explodir as costuras da leg preta, ela vinha pela calçada da Rua da Praia com a orelha grudada no telefone celular e a boca aos berros. “Vou te destruir a pau”, gritava, indiferente ao vexame que sua deselegante ira produzia.

 

A promessa feita por ela de “destruir a pau” quem estava do outro lado da linha fez barulho na minha cabeça. Ecoou nela. Para mim, esse tipo de ameaça soa muito mais aterradora do que “vou te matar”. Por quê? Ora, porque embora a morte seja sempre uma tragédia – não importa onde, como e quando acontece -, ela também pode ser uma libertação, pois quem morre leva tudo para o poço do esquecimento. Leva sonhos, frustrações e lembranças. Boas e ruins. Tudo se desfaz no sono que se instala depois da passagem.

 

A pessoa destruída, bem ao contrário, não tem esse benefício. Por quê? Ora, porque quando alguém promete que “vou te destruir a pau”, como fez a mulher de leg preta e lustrosa ventando Rua da Praia afora, o que ela está dizendo ao outro, àquele que a ouve do outro lado da linha, é que vai transformá-lo em zumbi se cumprir o que está anunciando. Quer vê-lo por aí morto-vivo. Quer vê-lo vagando como alma penada, carregando o peso de lembranças e sem porta por onde possa sair do cativeiro para começar de novo lá adiante.

 

A raiva que essa mulher escancarou foi uma intromissão de absurda deselegância no meu dia, que até ali vinha sereno e ponteado por imagens que, minutos antes, havia parado para fotografar, por bonitas. Na primeira, para além da Borges de Medeiros, na direção da Praça da Alfândega, o ator fazendo a sua versão para a estátua do Laçador sorriu assim que coloquei dois reais em moeda na sua caixa de coleta.

 

Quando perguntei se poderia fotografá-lo, a gentileza dele não contrariou a arte, porque a resposta veio rápida. “Sim, claro”. E melhor, presenteou-me com uma pose, encarando a câmera.

 

No sentido contrário, depois da Esquina Democrática, parei mais uma vez. Desta vez diante de uma vitrine. Fingi alto interesse em blusas e saias, mas a verdade é que estava ouvindo o jovem que, abraçando sua guitarra, cantava a vontade de ser acarinhado pelos braços da mulher amada. Tem voz bonita esse moço. Ele não consegue ver o que veem aqueles que simplesmente passam e aqueles que se dão um tempo para ouvi-lo, mas colore os versos com os tons da emoção. Deixei dois reais. Não me escutou quando lhe disse “muito obrigada”; Continuou cantando.

 

Foi quando apareceu o ator Alexander Maciel para encarnar mais uma estátua viva também inspirada na tradição gaúcha, que vivia mais uma semana de afirmação no Acampamento Farroupilha. Muito rapidamente, ele subiu no pedestal, onde, em agradecimento a cada contribuição, mostrou destreza no manejo do laço. “Posso tirar uma foto”?  Claro, respondeu. E posou coreografando laçadas. Quando terminei a sessão, ele me entregou um verso. “A felicidade e o amor. Não há dinheiro ou riqueza que as compre. Mas sim, se conquista”. Meio mal enjambrado. Não acha? Sim, Ainda assim, verso.

 

Talvez fizesse bem à raivosa de leg preta se ela parasse para recebê-lo. Ou não, se a deselegância dela for um caso perdido ventando sobre a calçada, ferindo ouvidos e sensibilidades no outro lado da linha e Rua da Praia afora.

 

Salve-se quem puder

 

MARIA WAGNER

JORNALISTA

 

Tenho compromisso agendado para as quatro da tarde desta sexta-feira de luminosidade acanhada em Porto Alegre. Olho pela janela. Posso sair sem medo? A calma da rua me diz que sim, mas o relato que ouvi ontem de uma amiga, pelo telefone, me aconselha que tome cuidado, que mantenha os olhos bem abertos para o que acontecer atrás de mim, ao meu lado e à frente enquanto estiver a caminho, recriando meus roteiros nesta cidade que amo e na qual o céu é tela para linhas e formas que agradam a todo tipo de pintor.  

 

Laura não aconselha à toa, porque acaba de experimentar na própria pele a consequência do descuido. No sábado passado, depois de uma semana de árduas jornadas, ela subia a rua arborizada onde mora, arrastando o carrinho carregado de compras feitas no supermercado mais próximo, quando foi abordada por um jovem que emparelhou seu passo com o dela. De relance, viu que estava bem vestido, mas não saberia reconhecê-lo para um retrato falado.

 

Ele não lhe deu tempo para observar detalhes. Sem preâmbulos, apresentou-lhe uma faca e ordenou: “Não olha para mim! Só quero teu dinheiro”!   

 

O tom era de quem estava disposto a qualquer maldade diante de uma recusa.  Gritar? Nem pensar. Laura preferiu obedecer. Então abriu a bolsa e entregou ao rapaz tudo o que ainda tinha, em notas e em moedas.

 

Somando umas e outras, a soma era algo em torno de R$ 190,00. “Ele fez

questão de levar até mesmo os centavos”, que minha amiga catou em todas as divisões da bolsa e no fundo dela, ao mesmo tempo em que sentia um líquido quente descendo por suas pernas em direção aos pés, onde alagou o tênis.

 

Você imagina a cena e tem vontade de rir? Ninguém vai estranhar. Ninguém vai apontar o dedo para acusá-lo de comportamento politicamente incorreto. Afinal, vivemos nesse tempo em que as cacetadas são recursos que os programas de televisão usam para alimentar seus índices de audiência.

 

É, mas seria cômico se não fosse trágico. Laura tem apenas 40 anos e

não é nessa idade que a incontinência urinária costuma preocupar, mas ela fez xixi nas calças, porque o delinquente, além de levar seu dinheiro, também lhe roubou a calma. Em volta, ninguém que pudesse dar-lhe um socorro. E, mesmo que houvesse alguém por perto, a pessoa certamente fingiria nada ver para não precipitar uma atitude mais radical do assaltante, ou ser alvo de represália dele num outro momento. 

 

Além disso - sim, sempre tem um além-disso - a pessoa que poderia ajudar se recolhe na apatia, porque ouve rádio, assiste à televisão e lê os jornais. Por isso sabe que, no Brasil, a vítima que se defende acaba virando réu. Quem lhe dá ajuda, também. O povo quer segurança, mas fura a fila nos bancos e acha ruim quando o outro reclama; quer garantia de segurança, mas bota a boca no trombone contra a porta giratória que controla o acesso aos bancos; quer segurança, mas joga pedra em quem reage quando o delinquente se dá mal; quer a proteção da polícia, mas reclama quando ela prende o sujeito que promove quebradeira escondido atrás da máscara.

 

Na semana passada, durante o show de Zeca Pagodinho no Araújo Vianna presenciei uma manifestação dessa elasticidade moral: quando duas meninas levantaram para dançar, o casal atrás delas protestou, e elas tiveram que buscar um espaço na lateral do auditório para seguir no samba. E o casal? Levantou para dançar nem um minuto depois. Quer dizer, fez exatamente aquilo que tinha acabado de censurar no comportamento das duas garotas.

 

Lembrei o que um dia ouvi de um colega de profissão sobre um caso em evidência na época: ele me disse que não se sentiria confortável em pedir rigor na punição para o autor do malfeito, “porque nada garante que amanhã ou depois eu não seja réu”. E la nave va. Desse jeito. Salve-se quem puder.

 

 

Energia para voar

 

 

MARIA WAGNER

Jornalista

 

Vida longa. Muito longa. Se possível eterna. Este é o sonho do ser humano que os cientistas tentam realizar em seus laboratórios de pesquisa. Volta e meia um deles abre uma janela para comunicar ao mundo a descoberta de mais um passo no que acreditam ser o caminho que os levará à descoberta do mistério que cerca a vida. E no ano seguinte ganha um Nobel.

 

Mas a vida longa sem saúde é o sonho aprisionado, que não consegue levantar voo e se transforma em pesadelo. Penso nisso enquanto misturo no copo do liquidificador os ingredientes –sempre orgânicos – de uma vitamina: duas colheres de linhaça (contém lítio, que joga o ânimo para cima); meio limão, com a casca; duas folhas de couve; uma banana; uma cenoura; um pedacinho de gengibre; uma colher de sopa rasa de canela em pó; meia colher de cafezinho de gergelim (com a casca preta); e água.

 

Pronto. Tudo isso vira um delicioso e refrescante suco, que faz um bem danado a quem necessita de um cérebro desperto, esperto, concentrado e sempre pronto para responder às demandas do cotidiano. Gente como nós, os jornalistas, por exemplo. Ah, mas uma batida sem açúcar? Sim, porque ele está contido na cenoura. Claro, a receita não é criação minha. Ela me foi passada pelo médico/psiquiatra ortomolecular Juarez Nunes Callegaro, autor de Mente Criativa – a aventura do cérebro bem nutrido (Editora Vozes), livro que estará nas bancas da Feira do Livro de Porto Alegre a partir de 1 de novembro.

 

Gosto muito de ouvir o “doutor Callegaro” (foto). É sempre uma aula, que, inclusive, desafia a minha capacidade de concentração. Nossa conversa mais recente aconteceu faz algumas semanas e consumiu três horas. Mais uma vez, ele foi enfático sobre o círculo vicioso que as escolhas erradas à mesa produzem em nossa saúde e em nosso comportamento, porque, quando a comida prejudica a saúde do corpo ela também adoece as nossas emoções e, em consequência, a forma como nos relacionamos com o ambiente e as pessoas que nos cercam. É uma reação em cadeia.

 

Nessa cadeia acontecem coisas das quais um leigo no assunto nem desconfia. O carboidrato, por exemplo, facilita a adesão à maconha, em um processo químico igual ao do açúcar, que fermenta e se transforma em álcool nos intestinos. Por isso, vicia. Juarez Callegaro explica que os intestinos são o nosso segundo cérebro e que, quando  funcionam de forma inadequada, não conseguem ajudar – pior que isso, perturbam - a estrutura que conhecemos como primeiro cérebro, essa massa cinzenta alojada na caixa craneana, porque a toxicidade produzida pelos resíduos alimentares contamina o sangue que circula pelo organismo. Mal comparando, o efeito é o da gasolina suja no desempenho de um carro.

 

Então queridos colegas, cuidem da saúde de vocês começando pelo que colocam no prato de comida e no copo, porque nutrir o organismo é muito diferente de calar o ronco do estômago. E, por favor, façam mais um gesto de amor próprio: rejeitem o cafezinho servido em copinho plástico, porque no contato com o calor, o plástico – derivado do petróleo – vira dioxina que simula um hormônio humano – estrogênio – e faz estragos no

organismo. Em mulheres grávidas, ameaça o desenvolvimento do feto. Nos homens, diminui a testosterona, o que significa aumento do risco de câncer na próstata e menos força aos músculos do coração.

 

O café é o combustível de grande parte dos jornalistas. Ele nos mantem acordados. Dá um ânimo! Não é? Ninguém resiste quando o cheiro dele – para mim o melhor perfume do mundo, melhor até que Chanel e Dior – viaja pela sala. Lembro que tomei muitos cafezinhos servidos em copinho plástico quando trabalhava no Jornal do Comércio. Preparei muitos também, para desgosto de colegas que preferem os extrafortes.

 

Mas de alguns me agredia o gosto, porque eram densos demais. Então dizia que “ainda vamos virar petróleo”, sem saber que atrás da brincadeira havia um fundo de verdade. Troquei o plástico pela xícara depois da primeira conversa com Juarez Callegaro. Ele me explicou o significado da máxima de Hipócrates – “O alimento é teu medicamento” – que a corrida atrás do lucro maltrata com o consentimento de quem não cuida da própria saúde.

 

Já na porta da casa para as despedidas, agradeço pela conversa. Mas aproveito para fazer mais uma provocação. Digo que “gosto muito da geleia de laranja, com casca cortada em fios, que preparo com stevia”. Então, sempre com aquele seu jeito calmo, Callegaro diz que “as índias paraguaias usavam a stevia como anticoncepcional”. Em seguida acrescenta que a canela atenua o efeito do açúcar. Que bom! Eu sabia que o cheiro dessa especiaria estimula o cérebro. Agora sei também que, além usá-la para dar um toque especial aos sabores que levava à mesa, minha mãe – provavelmente sem saber - protegeu seus filhos contra os males causados pelo açúcar. Perfeito

 

 

Obama perdeu

a magia?

 

MARIA WAGNER

JORNALISTA

 

O vento não está soprando a favor de Barack Obama, presidente dos Estados Unidos. Quem afirma isso são observadores da cena internacional. No Capitólio, porque não queriam as reformas no sistema de saúde propostas no Obamacare, os republicanos fizeram ouvidos de mercador aos pedidos dele e um deles, Ted Cruz, falou durante 22 horas para esgotar o prazo da votação. E o governo parou.

 

Na política externa, as águas em que navega também se agitaram. Obama se viu em situação desconfortável na abertura da 68ª Assembleia Geral das Organizações Unidas – ONU -, em Nova Iorque. Em parte, porque disputa a bola com Teerã e Moscou no que se refere aos conflitos nos países do Oriente Médio, especialmente a Síria. Mas também porque foi obrigado a engolir uma dura cobrança da presidente brasileira, Dilma Rousseff, que fez ouvidos de mercador diante do pedido que ouviu dele em Moscou, recentemente: “Tem que confiar em mim. Eu sou o presidente dos Estados Unidos”.

 

Estariam os astros conspirando para deixá-lo em maus lençóis na cama pública internacional? Não. Obama certamente não iria se apropriar do que já foi alegado pelo “extravagante” – na definição do Wall Street Journal– empresário brasileiro Eike Batista quando seu império foi para as cucuias. Mas cometeu pecado de ingenuidade quem esperava que justificasse, explicasse e pedisse desculpas aos países que seu governo invade através do trabalho laborioso da NSA nos caminhos da internet. Contudo, articulistas do mundo estão de olho nele. Na Alemanha, colheram a impressão de que o homem mais poderoso do mundo “perdeu a magia” e está na defensiva.                                                                                  

Convenhamos, a situação é incômoda para o líder do país que herdou as virtudes e os defeitos do império britânico - o maior da história até hoje -, e desde o fim da Guerra Fria, sozinho no pódio, dita o certo e o errado à periferia. Desde que foi criada, a Assembleia Geral da ONU era um jogo em os presidentes dos Estados Unidos balançavam a rede dos demais em campo, determinando o tom dos debates. Nesse gramado, na trilha de seus antecessores, Barack Obama era Primus Inter Pares e podia sentir-se em casa. Não desta vez.  

 

Em 2013 tudo mudou. A reverência acabou. Obama sentiu desde o discurso de abertura, da presidente do Brasil, que a sua zona de conforto está menos invulnerável. Dilma Rousseff foi enfática. Mais do que isso, usou palavras duras – jornais ingleses e alemães disseram que falou com “fúria” – para condenar o monitoramento eletrônico da Petrobras e dos telefonemas e e-mails da própria Dilma pela NSA. A espionagem é uma “afronta aos direitos humanos” acusou a presidente, que exigiu um pedido de desculpas dos Estados Unidos e a suspensão, imediata, das operações desse tipo contra diplomatas, empresas e políticos de estados soberanos e amigos. 

 

Cumprindo a programação, Obama falou logo depois, mas está enganado quem viu no que ele disse algum esforço para acalmar a presidente do Brasil. Afagou a ONU, elogiando o trabalho com que torna possível a solução amigável de conflitos, mas acrescentou que também os serviços de comunicação – metáfora para a espionagem – contribuíram para que o mundo de hoje seja mais estável do que há cinco anos – os atentados terroristas naquela semana no Quênia, no Paquistão e no Iraque comprovam que o monitoramento é necessário? Na sequência, admitiu como legítimos os desejos dos cidadãos à privacidade e que o tráfego na internet precisa de segurança. Mas nada disso soou como o pedido de desculpas exigido por Dilma Rousseff.

 

No tempo em que Obama, ainda candidato à presidência dos Estados Unidos, batalhava por votos que poderiam ser influenciados pela aprovação no exterior, admiradores dele ocuparam todo o espaço em torno do Portão de Brandemburgo, em Berlim (Alemanha). Mas a esperança de paz que representava então foi se esvaindo já ao longo do seu primeiro governo, porque ele não conseguiu cumprir as promessas de campanha – o fechamento da prisão de Guantánamo, por exemplo. E sua imagem perdeu muita força agora, quando ameaçou fazer uma guerra “pontual” na Síria, onde Bashar-al-Assad estaria – ou seriam os rebeldes armados por interessados de fora do país? - usando armas químicas contra os rebeldes.

 

Mais uma mentira? A pergunta faz sentido. Antes de Barack Obama, em abril de 2003, George W. Bush invadiu o Iraque à revelia da ONU, apoiando-se na mesma acusação. Então o vilão era Saddam Hussein, mas o foco eram os poços de petróleo dizem analistas da política internacional dos Estados Unidos. Então, quem conhece um pouco de história sabe que a alegação de Bush poderia ter fundamento. Afinal, na guerra do Iraque contra o Irã, o governo norte-americano havia fornecido armas de destruição em massa ao então ditador iraquiano.

 

Onde estão? Ninguém sabe. O que se sabe é que não foram encontradas pelos inspetores da ONU, antes da invasão pelas tropas de coalizão, e não foram encontradas depois. Até hoje. E o Iraque? Continua onde estava antes da guerra, mas agora é montanha de escombros.              .

 

Então por que deveríamos acreditar na palavra do presidente norte-americano agora, quando acusa o governo de Bashar al-Assad? Nos jornais da Alemanha se lê cautela. O que eles dizem é que Barack Obama “perdeu a magia”. Hoje ele não lotaria o espaço em torno do Portão de Brandemburgo. Joga mal? Pelo menos no que se refere à Síria, perdeu no zig-zag a bola para o russo malicioso chamado Vladimir Putin.

 

Então mais uma pergunta: o mundo está vivendo uma nova versão, atualizada, da Guerra Fria?

É o que parece. Também para o novo presidente do Irã, Hassan Ruhani. Totalmente ao contrário do seu antecessor, Ahmedinejad, ele garantiu em sua primeira na Assembleia Geral da ONU, que o Irã deseja contribuir para que haja paz no mundo e anunciou que está disposto a assumir um compromisso com o Ocidente sobre o desenvolvimento e o uso da energia atômica. Afirmou que o “Irã pode ser a âncora da estabilidade na instabilidade do Oriente Médio” e que a sua fama de “agressor foi criada por quem tem interesses na região e procura motivo para dominá-la”. Será que vem de lá, dessa parte do planeta que George W. Bush apontava como “eixo do mal”, a luz da esperança? Embora tenha afirmado que a tentativa de impor hábitos e costumes ocidentais aos países do Oriente Médio é uma “continuidade da Guerra Fria”, Ruhani agradou também ao conservador Wall Street Journal, que o definiu como “quebra-gelo”.

 

E o presidente Obama? Sem o apoio de Londres, negado em votação pelo parlamento britânico, e driblado por Putin, agora também ele está preferindo o diálogo. Resta saber até quando vai respeitar a vontade de seu povo – 64% não querem a guerra, segundo pesquisa – e resistir ao lobby dos fabricantes de armas e de outros bem intencionados quanto aos próprios interesses. Ou será que foi o mais esperto de todos quando deixou a bola nos pés de Putin? Para o bem e para o mal, agora Obama poderá dividir com ele a responsabilidade sobre o que virá se o seu país renunciar ao papel de xerife do planeta. Vai sobrar tempo para colocar a própria casa em ordem.

 

O lucro acima

de tudo

MARIA WAGNER

JORNALISTA

 

Na produção em massa, o que importa é o lucro. O que estiver no caminho para impedi-lo não terá vez. Por isso, os pintinhos meninos de raças poedeiras não têm chance ali onde impera essa visão. Logo depois de romperem a casca do ovo, com apenas um dia de vida fora dele, os pobrezinhos são apresentados ao carrasco e mortos. Simples assim. Para completar a insanidade capitalista, os corpinhos peludos são triturados na máquina – sem dó e sem piedade - e viram adubo. Simples assim.

 

Em números, a matança desses pintinhos chegará a 50 milhões somente em 2013, e somente na Alemanha. Essa é a estimativa da Peta, organização que defende a vida animal. Mas em Nordrhein-Westfalen, também na Alemanha, a prática está sendo muito questionada. Defensores dos animais querem proibi-la através de lei. Com razão!

 

Convenhamos que esse negócio é muito cruel até para quem, num domingo qualquer, fica salivando em torno de uma churrasqueira e  justifica o consumo da carne como absolutamente normal na “cadeia alimentar”.

 

O interessante é que os próprios criadores sabem que cometem uma enorme crueldade. Tanto sabem que ficam constrangidos quando convidados a falar sobre o extermínio das aves recém-nascidas. O problema é que o constrangimento é menor que o desejo de lucro e também não significa algum sentimento do tipo compaixão ou culpa. Por que teriam? No jargão da produção em massa esses pintinhos são “economicamente desinteressantes”: ao contrário das franguinhas, os franguinhos não põem ovos. Por isso, morrem no primeiro piu-piu.

 

Minha pergunta é se essa prática também acontece no Brasil e em que medida. Quando imagino que o dinheiro ganhando peso, altura e gordura no banco é o churrasco em torno do qual esses criadores salivam percebo um motivo para acreditar que sim. Afinal, não somos tão diferentes deles quando, saboreando uma caipirinha e discutindo quem vai ganhar o Grenal do domingo, esperamos que a picanha no espeto chegue à mesa e ao prato. Mas como a gente funciona associando ideias, uma leva a outra, agora me ocorre um alívio: ainda bem que o “economicamente desinteressante” ainda não foi copiado pelos humanos entre os humanos.

 

Será que não? Ou será que as guerras que levam os jovens à morte nos campos de batalha é metáfora disso?

 

 

Para terminar: espero que a Peta consiga garantir vida longa aos pintinhos meninos na Alemanha; e espero que a proposta de diálogo com que o russo Vladimir Putin evitou a ação armada na Síria, anunciada por Barack Obama para dar uma lição a Bashar al-Assad, seja levada a sério daqui para a frente, porque também os meninos humanos que morrem nas guerras merecem vida longa.   

 

Nem sempre inofensiva

 

MARIA WAGNER

Jornalista

 

Gosto da natureza. Da verde. Dessa que vejo nos parques. Que vejo através da janela de minha sala de trabalho. Basta virar a cabeça e lá está a ameixeira, carregada de frutas. É festa para meus olhos. Não somente porque é bonita, mas também porque me leva de volta ao pomar da minha infância, um paraíso de sabores e cores que foi obrigado a ceder espaço ao progresso que desapropria terras e constrói estradas. Uma questão de lógica: sem elas o carro não sai do lugar; sem elas o veículo nem precisa sair da montadora, que dá emprego e sustenta a economia.

 

Agora temo pela ameixeira. Até quando ela estará no jardim? É, sou gato escaldado. Explico: depois do pomar da minha infância, vivi uma segunda paixão. Caí de amores por uma pitangueira. Os braços dela invadiam minha sala de estar sem a menor cerimônia. Trocava ideias comigo. Sobre o tempo, sobre o mundo. Era minha confidente.  

 

Eu lhe contava minhas pequenas tristezas, lhe falava de minhas alegrias; elogiava a cor de suas frutas e elogiava a generosidade com que oferecia seus galhos ao ninho de sabiás. Mas um dia, quando abri a janela para mais uma conversa, minha amiga não estava lá. Não, não tinha saído a passeio. Tinha sido arrancada pela raiz.

 

Outra questão de lógica? Sim, de quem havia decidido que a pitangueira deveria ser sacrificada. Mas essa decisão não estava combinando com a minha maneira de pensar e, por isso, encaminhei denúncia à Secretaria Municipal do Meio Ambiente. Minha reação seria outra se a vítima tivesse sido um eucalipto? Seria. Porque a grandiosidade do eucalipto esconde uma armadilha dizem especialistas no assunto: sua fragilidade. De vida curta, ele cresce para o alto muito rapidamente, mas sua madeira sofre a ação do tempo com a mesma rapidez. Tê-lo nas vizinhanças é perigoso, já dizia minha mãe, Mathilda.          

 

Lembrei-me disso no dia 31 de agosto, quando a queda do eucalipto no Parque da Redenção causou a morte de Lenir Heinen, juiz do Trabalho. Eu estava lá. Vendo a árvore no chão e, no meio da galhada, e vendo a vítima coberta por um pano branco dei-me conta do quanto minha mãe havia sido amorosamente responsável: sempre que havia tempestade, fosse de madrugada, fosse a qualquer hora do dia, ela reunia os filhos na sala que não seria atingida se o eucalipto vizinho à casa viesse abaixo por causa do vento. Meu pai meneava a cabeça, confiava na sorte, mas respeitava o medo dela e nos fazia companhia na tal sala. Por fim, acabou cedendo aos argumentos de Mathilda e permitiu o corte da árvore. Ela estava certa.

 

E certo estará também a SMAM se der ouvidos à campanha que o jornalista Ayres Cerutti está iniciando para evitar a repetição de tragédias como a que aconteceu no Parque da Redenção no dia 31 de agosto. Mas o perigo não se resume ao eucalipto. Em frente aos prédios da UFRGS, na Paulo Gama, há várias árvores pedindo uma vistoria. Melhor seria se fosse feita hoje, não amanhã ou quando houver vítima para ser lamentada. A natureza verde é bela, mas contêm armadilhas. 

 

 

 

 

bottom of page